Por Luciano Pires
Perder um filho para o “mundo” não é um evento. É um processo. E, quase sempre, silencioso. Recebi o vídeo de uma jovem que cresceu em homeschooling, em um lar cristão e conservador, e que, ao cair na adolescência, abraçou com convicção aquilo que combateu a infância inteira.
“Como assim? Onde foi que erramos?” A resposta dói porque é simples: subestimamos duas forças que nunca tiram férias — mídia e pares. E, na adolescência, pertencimento vale mais do que coerência.
A ciência vem avisando há décadas.
Urie Bronfenbrenner (1917–2005) foi um psicólogo do desenvolvimento russo-americano, professor em Cornell, coautor intelectual do programa Head Start nos EUA e criador da Teoria dos Sistemas Ecológicos (depois ampliada para o modelo bioecológico/PPCT). Em essência, ele mostrou que o desenvolvimento de uma criança acontece em camadas de contexto que se influenciam:
• Microssistema: ambientes imediatos (família, escola, igreja, time, smartphone na mão).
• Mesossistema: como esses microssistemas se conectam (pais↔escola, pais↔amigos).
• Exossistema: contextos que afetam indiretamente (trabalho dos pais, mídia local).
• Macrossistema: cultura, valores, instituições, ideologias.
• Cronossistema: o fator tempo (mudanças de vida, transições, era digital).
Resumindo, Bronfenbrenner explica, com base científica, que a formação de uma pessoa acontece em ecossistemas interligados — família, escola, comunidade, cultura. Hoje, o “ecossistema” cabe no bolso: um smartphone, 24 horas por dia.
E aqui entra Albert Bandura — o sujeito que estraga desculpas. Enquanto a gente põe a culpa “no mundo”, “na escola”, “na geração zzz”, ele aparece com uma câmera, um boneco inflável chamado Bobo e prova, sem poesia, que as pessoas aprendem vendo. Não é só suor e caderno; é retina e repertório. A criança assiste um adulto batendo no boneco, entra na sala e faz igual — às vezes pior. Pronto: a timeline virou catecismo, o influencer virou professor e a sala de aula cabe no bolso. Quem controla o fluxo de modelos molda comportamento, valores e hábitos. Simples. E assustador.
Bandura chamou isso de aprendizagem social. Parece óbvio, mas o óbvio precisa de ciência para nos envergonhar. Aprendemos por modelagem: observamos, imitamos, testamos. Se o “modelo” é recompensado, aprendemos mais rápido; se é punido, freia. Nem precisamos ser nós os premiados: o reforço vicário, aprender pelo que acontece com os outros, não com você, faz o serviço.
E nada disso acontece no vácuo: pessoa, ambiente e comportamento dançam juntos, o tal do determinismo recíproco, é a ideia de que pessoa (P), comportamento (B) e ambiente (E) se influenciam mutuamente e em ciclo contínuo. Troque o ambiente e a pessoa muda; mude a pessoa e o ambiente responde; mude o comportamento e realimente os dois. É uma engrenagem viva.
No coração dessa história está a autoeficácia — a crença de “eu consigo”. Quem acredita que consegue tenta mais, persiste mais, resiste mais. Quem não acredita terceiriza: “depois eu vejo”, “não sou bom nisso”, “deixa pra quem nasceu com talento”. Em linguagem de família: se seu filho só experimenta vitória no videogame, a vida real vira território hostil. Se experimenta progresso real — estudo, esporte, música, serviço — ele carrega para dentro uma bússola que não depende do humor da tribo.
E quando a bússola quebra? Aí entra outro Bandura, o que cutuca a nossa consciência: desengajamento moral. É o mecanismo mental que “desliga” a culpa. Usa-se eufemismo (“não é mentira, é storytelling”), desloca-se responsabilidade (“o algoritmo quis assim”), difunde-se a autoria (“todo mundo faz”), compara-se com coisa pior (“pelo menos não matei ninguém”). Pronto: dá para fazer o errado se sentir certo. A cultura agradece, o caráter apanha.
Agora, respire fundo e olhe para a adolescência. É a fase do rascunho de identidade: testar figurinos, tribos, slogans. Se os modelos que chegam com mais força são três — o grupo de amigos, o feed do celular e os adultos ausentes — a conta fecha sempre contra os pais. Não por maldade: por exposição. Bandura, de novo, esfrega nos nossos olhos a pergunta incômoda: quem são os modelos que você deixa entrar em casa todos os dias?
“Mas a família não é o que mais pesa?” Nem sempre. A psicóloga/escritora americana Judith Rich Harris, em The Nurture Assumption, escreveu a heresia que muitos pais não querem ouvir: na adolescência, os pares podem influenciar mais que os pais na socialização. Some-se a isso a fome de pertencimento identificada pelos psicólogos sociais americanos Roy Baumeister e Mark Leary: ser aceito é necessidade básica. Troque “ser aceito” por “ser curtido” e você tem a pedagogia do feed.
Em paralelo, a identidade do adolescente está em obra. James Marcia descreveu os estados de identidade (difusão, moratória, fechamento e conquista). A moratória — fase de exploração — é fértil para experimentos, bandeiras, tribos. Se a cultura dominante diz que os valores da sua casa são “asquerosos”, como relatou a jovem do vídeo, a bússola treme. E treme mais quando a mídia oferece pertencimento instantâneo: “venha para o nosso lado; aqui você é visto”.
Jonathan Haidt e Jean Twenge vêm demonstrando o impacto das redes sobre saúde mental e desenvolvimento social: ansiedade, depressão, comparação interminável, sono destruído, atenção fragmentada. Sherry Turkle mostrou como “conversas” em rede trocam profundidade por performance. Neil Postman antecipou o cenário: quando tudo vira entretenimento, o pensamento crítico vira “spoiler”. George Gerbner já falava da “teoria do cultivo”: consumo contínuo de conteúdo molda percepções de realidade. Some Robert Cialdini e sua “prova social”: se “todo mundo” pensa assim, quem é você para nadar contra a corrente?
Moral da história: Homeschool pode ser fortaleza, mas, sem a muralha da conversa diária e da experiência comunitária, vira castelo com Wi-Fi aberto. A adolescência não é uma guerra de argumentos; é uma guerra de pertencimento. Quem oferece tribo com sentido, rotina, liturgia, narrativa… ganha.
“Vacinar” é a palavra. E aqui não é metáfora vazia; é teoria. William McGuire, na Inoculation Theory, mostrou que expor pessoas a versões fracas de argumentos contrários, ensinando-as a refutá-los, aumenta resistência futura. Pais que evitam o debate “para proteger” criam anticorpos ou criam vulneráveis? Prebunking e debunking fazem parte do kit de sobrevivência intelectual.
Como isso conversa com meu trabalho? No Café Brasil, a pauta sempre foi formar anticorpos culturais: provocar reflexão, costurar história, economia, filosofia e vida real. É “nutrição” para o discernimento — e, como diria Bandura, modelagem de pensamento: histórias, desmontes de narrativas, biografias, filosofia aplicada, para aumentar sua autoeficácia moral — vocabulário, argumentos, coragem para nadar contra a corrente sem virar gralha raivosa. No Café com Leite, fazemos a mesma coisa no idioma das crianças: Bárbara e Babica encenam como pensar e como agir. Quando uma diz “calma, vamos entender”, e a outra rebate “mas por que isso importa?”, estamos treinando observação, argumento e comportamento — Bandura sorriria. Não há “doutrinação”; há musculação de caráter. É diferente: doutrinação entrega respostas; educação ensina a fazer perguntas.
Pais, mães: liderança no lar é “nutritiva” ou não é liderança. Nutritiva porque alimenta (conhecimento), fortalece (virtude) e dá espaço para crescer (autonomia responsável). Não terceirize a formação de seus filhos para algoritmos impacientes e amigos confusos. Algoritmo não ama. Amigo pode amar, mas também pode arrastar. Vocês são o porto — e porto é firme.
Propostas concretas (sem ilusão, sem culpa, sem “coachês”):
- Tribo antes de tela. Adolescente precisa de grupo. Se você não oferece comunidade com propósito (escola, igreja, esporte, artes, escotismo, serviço), a internet oferece. Só que sem adultos responsáveis na sala. Pertencer a algo bom não é luxo; é proteção.
- Contrato de Mídia Familiar. Regras claras e combinadas: idade mínima para smartphone, horários sem tela (refeições, 1h antes de dormir), quarto sem celular, limites de apps, senha com os pais até certa idade. Não é vigilância paranóica; é guarda-corpo. Haidt e Twenge apontam: atrasar a entrada plena nas redes diminui riscos.
- Inoculação semanal. Escolham um tema “quente” do noticiário/redes. Primeiro, escutem o argumento contrário com caridade. Depois, desmontem juntos: fontes, lógica, consequências. Ensinem o filho a dizer: “Entendo seu ponto. Posso te mostrar por que discordo?” Retórica sem agressão é arte — e arma.
- Liturgias da casa. Refeições com conversa (sem tela), leitura em voz alta, filmes discutidos, serviço voluntário mensal, rituais de fé. Liturgias moldam amores, como diria James K. A. Smith. Valor não é só ideia; é hábito encarnado.
- Vocabulário moral. Haidt lembra: formamos juízos morais por intuição e justificamos depois. Se o filho não tem palavras para nomear virtudes e vícios, a intuição será sequestrada pela estética do grupo. Dê palavras: lealdade, coragem, temperança, justiça, humildade, honra. E exemplos.
- Mentores e “tios”. Todo adolescente precisa de outros adultos de confiança. Se a única voz adulta for a sua, você vira antagonista automático. Monte uma rede de mentores — treinador, líder de jovens, professor, tio — que reforcem os mesmos valores em outro timbre.
- Projeto de vida. Marcia mostra que identidade sólida nasce de exploração + compromisso. Ajude a testar caminhos reais: trabalho voluntário, pequenos estágios, construção de algo concreto. Quem experimenta “mundo real” não busca pertencimento apenas no figurino ideológico da semana.
- Economia da atenção. Robôs não dormem. Gente sim. Higiene do sono, exercícios, luz do sol, música, artes, conversa — isso não é “vintage”; é saúde mental. Turkle e Twenge não cansam de mostrar a relação entre tela excessiva e mal-estar.
- Mapa de risco social. Com quem seu filho anda? Que adultos os cercam? Que “heróis” ele segue? Bandura sorri quando você mapeia modelos e decide quais entram em casa. Inscreva bons heróis: biografias, grandes filmes, histórias que elevam.
- Debate sem humilhação. A casa precisa ser o lugar onde seu filho pode “testar” ideias sem virar piada. Quem é ridicularizado em casa vai buscar acolhimento incondicional fora — e o algoritmo tem um abraço quentinho para oferecer.
E nós, nos podcasts? Quero acelerar essa vacinação intelectual. No Café Brasil, montamos sequências especiais sobre “pertencimento, mídia e caráter”, conectando Haidt, Twenge, Harris, Bandura, Bronfenbrenner, Cialdini, Postman e Turkle, com casos do Brasil — escola, música, redes, política do cotidiano. No Café com Leite, criamos “Trilhas de Conversa” para famílias: episódios curtos, perguntas gatilho e atividades simples (as tais liturgias). O objetivo é um: devolver aos pais a primazia da formação e dar às crianças, desde cedo, anticorpos contra narrativas fáceis.
“Ah, mas é difícil.” Difícil é ver o filho se dissolver em tribos que só existem enquanto a hashtag estiver quente. Difícil é olhar para trás e perceber que a gente investiu mais tempo em configurar controle remoto do que caráter. Difícil é confiar a educação do coração a um aparelho que não pisca.
A adolescência é ponte, não destino. Mídia e amigos continuarão a disputar a alma dos seus filhos. A diferença será a espessura da travessia que vocês constroem em casa. Liderança nutritiva começa na mesa de jantar, passa por histórias bem contadas, pelo exemplo silencioso e chega, sem alarde, no momento em que seu filho consegue dizer “não” a um grupo… e “sim” a si mesmo.
Vacine-os, sim — com ideias fortes, hábitos bons e afeto inegociável. Ensine-os a argumentar sem odiar, a pertencer sem se perder, a crer sem pedir desculpas por crer. O telefone na mão de uma criança é uma usina — pode iluminar ou queimar. Cabe a nós projetar o circuito.
Nome citados no texto:
Urie Bronfenbrenner – foi um psicólogo do desenvolvimento russo-americano, professor em Cornell, coautor intelectual do programa Head Start nos EUA e criador da Teoria dos Sistemas Ecológicos
Albert Bandura — psicólogo canadense-americano; criador da Teoria da Aprendizagem Social, pesquisou autoeficácia e desengajamento moral.
Judith Rich Harris – psicóloga e escritora americana que ficou famosa por desafiar a ideia consagrada de que os pais moldam, sozinhos, a personalidade dos filhos.
Roy Baumeister – psicólogo social americano, um dos mais citados da área. Ficou conhecido por pesquisas sobre autocontrole, pertencimento, autoestima, rejeição social, agressão e sentido da vida.
Mark Leary – psicólogo social americano e professor emérito de Psicologia e Neurociência na Duke University. É conhecido por pesquisar autoestima, ansiedade social e gestão de impressão (o jeito como “performamos” para sermos aceitos).
James Marcia — psicólogo do desenvolvimento; formulou os status de identidade (difusão, moratória, fechamento e conquista).
Jonathan Haidt — psicólogo social; pesquisador de psicologia moral e efeitos das redes em jovens.
Jean Twenge — psicóloga; pesquisadora de gerações (iGen) e saúde mental na era digital (San Diego State University).
Sherry Turkle — socióloga e psicóloga; professora do MIT; estuda tecnologia x relações humanas.
Neil Postman — teórico da mídia e educador; professor da NYU; crítico da cultura do entretenimento.
George Gerbner — pesquisador de comunicação; ex-reitor da Annenberg School (UPenn); formulou a Teoria do Cultivo.
Robert Cialdini — psicólogo social; referência em persuasão e prova social.William J. McGuire — psicólogo social; autor da Teoria da Inoculação (prebunking).
James K. A. Smith — filósofo e teólogo; popularizou a ideia de “liturgias culturais” (hábitos que moldam amores).
Bronfenbrenner
- The Ecology of Human Development (Harvard University Press):
https://www.hup.harvard.edu/books/9780674224575 - (Cópia em PDF para estudo):
https://khoerulanwarbk.files.wordpress.com/2015/08/urie_bronfenbrenner_the_ecology_of_human_developbokos-z1.pdf
Bandura (aprendizagem social, autoeficácia, desengajamento moral)
- “Transmission of Aggression Through Imitation of Aggressive Models” (1961) – PDF:
https://www.simplypsychology.org/wp-content/uploads/bandura.pdf - “Self-Efficacy: Toward a Unifying Theory of Behavioral Change” (1977) – PDF:
https://educational-innovation.sydney.edu.au/news/pdfs/Bandura%201977.pdf - “Moral Disengagement in the Perpetration of Inhumanities” (1999) – página da revista:
https://journals.sagepub.com/doi/10.1207/s15327957pspr0303_3 - (Versão em PDF para leitura):
https://sdimakis.github.io/moral_psychology/readings/week_7/Bandura_1999.pdf
Pares, pertencimento e identidade
- Judith Rich Harris — The Nurture Assumption (Simon & Schuster):
https://www.simonandschuster.com/books/The-Nurture-Assumption/Judith-Rich-Harris/9781439101650 - Baumeister & Leary (1995) “The Need to Belong” – PDF:
https://persweb.wabash.edu/facstaff/hortonr/articles%20for%20class/baumeister%20and%20leary.pdf - James Marcia (1966) “Development and Validation of Ego-Identity Status” – PDF:
https://scispace.com/pdf/development-and-validation-of-ego-identity-status-5gpe0py3me.pdf - (Visão geral em acesso aberto sobre “identity statuses”):
https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC3394234/
Mídia, redes e saúde mental
- Twenge et al. (2019) Journal of Abnormal Psychology – PDF:
https://www.apa.org/pubs/journals/releases/abn-abn0000410.pdf - Twenge (2020) visão geral em The Journal of Pediatrics (acesso aberto):
https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC9176070/ - Jonathan Haidt — The Anxious Generation (site oficial do projeto):
https://www.anxiousgeneration.com/ - Sherry Turkle — Reclaiming Conversation (MIT):
https://sts-program.mit.edu/book/reclaiming-conversation-power-talk-digital-age/ - Neil Postman — Amusing Ourselves to Death (Penguin Random House):
https://www.penguinrandomhouse.com/books/297276/amusing-ourselves-to-death-by-neil-postman/ - George Gerbner — “Cultivation Analysis: An Overview” (1998) – PDF:
https://cultivationanalysisrtvf173.pbworks.com/f/GerbnerJS.pdf
Persuasão, prova social e “vacinação” (inoculation)
- Robert Cialdini — Influence, New and Expanded (HarperCollins):
https://www.harpercollins.com/products/influence-new-and-expanded-robert-b-cialdini - McGuire & Papageorgis (1961/1964) — recursos sobre Inoculation Theory:
(resumo técnico com referências originais) https://nsiteam.com/social/wp-content/uploads/2020/12/Quick-Look_Inoculation-Theory_FINAL.pdf
(revisão em acesso aberto) https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4746429/
“Liturgias” que moldam amores (hábitos)
- James K. A. Smith — You Are What You Love (Baker/Brazos Press):
https://www.bakerpublishinggroup.com/books/you-are-what-you-love/377771